Abri a mala com cautela e demasiada demora. Não que tenha
sido algo difícil de fazer, visto que estava abarrotada e praticamente se
abrindo sozinha. Aventurei-me a
bisbilhotar seu interior com o canto do olho e sem pressa, como se faz quando
se visita uma casa pela primeira vez. Lembranças transbordavam de seu interior
e me esbofeteavam o rosto, lembranças de um passado que não me pertencia e que
talvez nunca o tenha feito. Sorriam e mostravam a língua como uma criança mal
criada. Meu pai dizia que na vida nós temos muitas vidas, e que, ao partirem,
cada uma delas nos deixa de presente um passado repleto de lembranças. Guardei
minhas vidas naquela mala de madeira gasta e durante muito tempo limitei-me a
fita-la. Naquele dia, após tanto trocar olhar, me afundei no passado, em tempos
onde o sorriso não esfaqueava as bochechas. Meu pai também dizia que o mundo é
dividido entre aqueles que amam e aqueles que fingem não amar. Dizia, com um
sorriso de rugas, que todos possuem amor dentro de si, mesmo que seja um amor coberto
de ódio. Havia amor na mala. Um amor puro e inocente, daqueles que só o verão
proporciona. Na mala havia mãos tremulas e soadas e sorrisos roubados aos
montes. Dela emanavam cheiros diversos, cheiro de grama molhada, sal, pasta de
dentes e madeira. Em cima de tudo, encontrei um velho relógio, eternamente paralisado
ás 15h03min de um dia quente do verão de 1957. Aqueles eram outros tempos, tempos onde tudo era nada e nada era tudo e, principalmente, onde era sempre assim: tudo ou nada. Tempos em que um foda-se resolvia tudo. Tempos de uma ignorância inocente, de um poder sem origem e uma vontade de descobrir o mundo inteiro em um segundo. Tempos onde explicações eram bobagens e onde viver como se fosse o ultimo dia era o que importava. Tempos onde se chorava até secar, sorria até rasgar e gargalhava até sangrar. Não havia meio termos, era um ou outro. Encontrei fotografias e me
choquei ao perceber que mal me lembrava do momento em que foram tiradas. Sorri
ao ver que a velha câmera da minha mãe estava intacta. Passei a vida me
perguntando como um simples objeto consegue congelar um momento pra sempre e
sinto que morrerei ser saber a resposta. Sempre amei fotografias, o mistério e a magia por trás delas me
fascinam. A fotografia é o corpo da lembrança. Quando criança, costumava fita-las por horas,
me perguntando o que aquelas pessoas estavam fazendo antes de serem
fotografadas, e o que fizeram depois. Imaginava-as correndo para se abraçar e
depois piscando devido á luz do flash. Vejo o passado com um tênue receio, com
respeito e certa cumplicidade. Como um estranho á quem se tem a impressão de
ser um velho amigo. Aperto sua mão e dou um sorriso amarelo, considerando a
mais mínima intimidade uma coisa proibida. Quando se envelhece, ele é sua única
companhia. Além da clássica poltrona velha, claro. São recebidas constantemente
visitas de perguntas sempre começadas com “e se” e, se você quiser, pode
considerá-las companhia também. Quando uma coisa chega, outra sempre se vai. Os
anos nos tiram as pessoas (que, ao chegarem, nos tiram outras pessoas), a idade
nos tira a memória e o passado nos tira o sono. Naquela noite, aquela mala
velha, entupida de coisas velhas, se tornou minha melhor amiga. Acariciar
aquela madeira gasta e as bugigangas do seu interior foi o mais perto que eu
cheguei de um abraço. E veja bem, não reclamo. Pois como dizia meu pai, não se
pode ter tudo.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
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amo seus textos, ta lindo esse
ResponderExcluirTexto muito lindo Nat, estava com saudade de ver os seus textos. Está lindo como todos os outros, beijos.
ResponderExcluirQue coisa mais linda! Você escolhe muito bem as palavras.
ResponderExcluirexiste faculdade de escritora? não, porque de repente você pode dar aula la né? nossa que bosta. ps: mt foda o texto yin
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